Dieta Mediterrânea by Silvio Lancellotti

 
Meu Mestre e Mentor - Silvio Lancellotti 

O fisiologista Ancel Keys, o Azeite
de Olivas e a Dieta Mediterrânea

Por Sílvio Lancellotti


Em 1011, liderados por Alferius di Pappacarbone, quatro monges beneditinos, fugidos da radical perseguição que lhes moviam os invasores normandos da Sicília, enfim se instalaram na região de Salerno, no sul de Nápoles. Lá, junto à igrejinha de Sancta Maria de gli Puppi, erigiram uma solene abadia. Em 1282, ao eclodirem as “Vésperas Sicilianas”, nome histórico da revolução popular que, em apenas seis semanas, levaria à expulsão dos invasores, os normandos destruíram a edificação. De todo modo, ali já existia um vilarejo mínimo, Pioppi, que o acaso e o rolar do tempo, por várias razões, acabariam de celebrizar.


Embora ostente menos de 350 habitantes fixos, desde a metade do século passado Pioppi se tornou um ponto de referência para o turismo na província da Campânia, em particular no Verão. As suas praias seguidamente ganham prêmios pela limpidez de suas águas. E no seu imponente Palazzo Vinciprova, datado do Século XVI, se abrigam o Museu do Oceano, com alguns dos aquários mais lindos do planeta, e o Museu da Dieta Mediterrânea, dedicado à memória de um cientista norte-americano, Ancel Keys (1904-2004), um seu morador de mais de quatro décadas um pioneiro na propagação dos benefícios salutares do consumo regular do Azeite de Olivas Extra-Virgem.  


Nascido em Colorado Springs, num dia 26 de Janeiro, de Aquário, aquele signo dos humanistas brilhantes, Keys se destacou, por exemplo, entre outros sucessos, como um estudioso aplicadíssimo das influências da alimentação na longevidade. Ele era, mesmo, excepcional. Ainda bem menino, quando a sua família se transferiu a Berkeley, na Califórnia, impactou Lewis Terman, um dos patriarcas da utilização dos Testes de Inteligência, ao suplantar índices de professores celebrados. Mas, curiosamente, durante a a adolescência, optou por se dedicar a serviços insólitos, como coletor de esterco de morcegos, preenchedor de bastões de dinamite em minas e pedreiras, marinheiro em um cargueiro de San Francisco à China. Mesmo assim, no entanto, depressa completou o curso intermediário e conquistou uma bolsa na Universidade da região. 


Em Berkeley se graduou em Economia, em Ciências Políticas, até em Zoologia e em Oceanografia. Daí, em 1930, aos meros 26 de idade, já um PhD em Biologia, incessantes convites o levaram até Copenhague na Dinamarca, a Cambridge na Inglaterra e, de volta aos EUA, a Harvard e a um segundo doutoramento, agora em Fisiologia. Em 1935, nos Andes sul-americanos, Keys pessoalmente analisou os eventuais efeitos da altitude na pressão sanguínea e publicou um complexo trabalho que a Força Aérea e a NASA utilizariam como parâmetro dos treinamentos dos seus pilotos e dos seus astronautas. 


Então, a pedido do Governo Roosevelt, preocupado com as ameaças de um conflito bélico, desenvolveu uma ração que, por ao menos duas semanas e sem qualquer risco de se arruinar, pudesse sustentar os soldados num campo de batalha. A preciosidade recebeu o batismo de Ração-K. Uma caixinha que pesava 790g e fornecia 3.200 calorias a cada dia, com biscoitos, carne defumada, chocolates e doces vários. O seu conceito prevalece até hoje. Também no transcorrer da guerra, patrocinado pela Universidade de Minnesota, participou da criação de um embrião dos suplementos vitamínicos do futuro. Em mais um dos seus intentos desusados, submeteu três dezenas de voluntários a períodos de extrema privação e, depois, de renutrição em etapas. Consequência: a edição, em 1950, de uma obra crucial de 1.385 páginas: “A Biologia da Fome”. 


Em 1951, a convite da FAO, a ramificação da ONU que se destina à agricultura e à alimentação, viajou à Itália para a primeira conferência organizada no globo sobre a situação da fome e da nutrição nos cinco continentes. E realizou um contato que revolucionaria a Gastronomia. Diretor do Instituto de Fisiologia da Universidade de Nápoles, o professor Gino Bèrgami lhe contou que, na sua cidade, praticamente não se conheciam doentes do coração. E isso num momento em que a mídia dos EUA propalava o crescimento do número de infartos e de correlatos entre os executivos de metrópoles como Nova York. Intuitivo, Keys ligou as pontas e concluiu: sim, havia uma relação entre o que se comia na Campânia, muito Azeite, e o que se comia nas metrópoles, o excesso de gorduras. Sem dizer que no Sul da Itália sobravam as pessoas próximas da alcançar os cem anos de idade.


Um enigma? Ancel Keys adorava enfrentar mistérios. E mergulhou na busca da solução daquela charada. Com a esposa Margaret se acomodou em Nápoles e desandou a investigar os cardápios que se propunham nas famílias da região. Seis meses após, a curiosidade conduziu o casal a replicar a pesquisa na Espanha, onde os Keys deliraram com a semelhança essencial dos menus dos ibéricos e dos italianos. Dessa semelhança, e da sua oposição em função do que se comia nos EUA, brotou uma ideia primorosa: por quê não ampliar a comparação e os contrastes para outras plagas? Keys montou uma equipe de assessores e organizou uma alentada, ambiciosérrima inquirição. 


Sob o título de “Um Estudo em Sete Nações” (além de Itália e Estados Unidos, também a Finlândia, a Grécia, a Holanda, a Iugoslávia e o Japão), um esquadrinhamento dos hábitos alimentares de 12.000 indivíduos entre os 40 e os 59 anos de idade. Os resultados não necessitaram de tradução ou explicação. Nas três nações do Mediterrâneo, onde predominavam as refeições à base de carboidratos, de pescados e hortifrutis exclusivamente condimentados ou tratados com Azeite, o percentual de mortalidade por cardiopatia isquêmica se provou mais do que confortável em relação ao da Finlândia, onde predominavam pratos à base de gorduras saturadas, manteiga, banha, leite e carne vermelha. Em 1959, Keys lançou o tratado “Coma Bem e Viva Bem”, um sucesso tão gigantesco que, em Janeiro de 1961, a revista “Time” o colocou na sua capa.


Empolgado pelos desdobramentos do seu trabalho, em 1962 ele inclusive comprou, em Pioppi, uma bela área que batizou de Minnelea, síntese da Minnesota em que desenvolveu boa parte do seu trabalho sobre a fome, e da Elea, um antigo nome grego para a região. Na Minnelea construiu a residência na qual se estabeleceria durante as quatro décadas seguintes. Lá, Keys e Margaret, inclusive curtiam o seu próprio Olival e produziam o seu azeite artesanal. Ele se foi num dia 20 de Novembro, em pleno sono, já centenário, com dificuldades de locomoção mas lúcido, alguns meses depois de, nostalgicamente, retornar da sua Pioppi. Margaret sobreviveu ao marido. Pena. Não bastou a morte física de Keys e apareceram os detratores de plantão, capazes de, perversamente, acusá-lo de forjar e falsificar os dados de cada pesquisa, cada investigação. Impossível. Keys resiste. Não se assassina uma lenda.









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